Entrevista a Rui Poças aip sobre "Amadeo"

03 maio 2024

 AMADEO Thum

"Amadeo" foi fotografado por Rui Poças aip e realizado por Vicente Alves do Ó.

Por ocasião das nomeações para Melhor Direção de Fotografia dos Prémios Sophia da Academia Portuguesa de Cinema republicamos a entrevista conduzida pela Joana Garcia a Rui Poças aip sobre o filme Amadeo.

Joana Garcia: Para si, qual é o principal desafio em filmar um filme de época como este?

Rui Poças: Vejo dois tipos de desafios: o desafio propriamente técnico, que é o de registar materiais no nosso tempo presente e fazê-los viver como se estivessem a existir há um século atrás. É um desafio na escolha de lugares, da direção de arte, no vestuário, etc, a que a fotografia não é alheia. É o que faz o espectador acreditar, dentro da lógica do cinema, que as imagens que está a ver pertencem a uma determinada época. O outro desafio para mim é, apesar de pretender retratar uma época passada, dar-lhe uma característica que o una ao nosso tempo, ao olhar do século XXI. Acho que se os filmes de época se fizessem sempre da mesma maneira, se se cumprissem sempre os mesmos códigos e convenções, seria um grande aborrecimento. Vejam-se os filmes dos anos 50, por exemplo, retratando épocas passadas como a Idade Média ou o Antigo Egipto. Para além da história do filme, o que se vê é uma visão de uma época sobre outra época. Eu acho esse croché de projeções e convenções maravilhoso. Ele diz mais sobre a própria época do que a época retratada, muitas vezes. E isso é para isso que no fundo o o cinema serve: falar de nós, do nosso tempo. Em última instância mesmo um filme de ficção pode ser visto em parte como um documentário, ou pelo menos certamente como um documento.

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JG: Qual foi o ponto de partida e como é que se definiu a escolha da abordagem e estética cinematográfica entre o Diretor de Fotografia (Rui Poças) e o Realizador (Vicente Alves do O)?

RP: Como tínhamos já a experiência de trabalhar em colaboração de um filme anterior, a abordagem e definição de conceitos para este filme foi muito fácil de afinar. Como habitualmente partimos do guião, da sua estrutura, e definimos objectivos para cada parte do filme. O facto de se tratar da historia pessoal de um pintor que se desenvolve em diferentes territórios e épocas deu-nos algumas pistas logo desde o inicio.

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JG: No filme, existe ausência de simbolismos quanto aos quadros de Amadeo de Souza-Cardoso. É possível que isso tenha representado um desafio acrescido de alguma forma na imagem para a eficácia da narrativa? Ou por outro lado o uso recorrente ao longo do filme de enquadramento (quadro dentro do quadro), sendo o plano de abertura do filme o mais significativo em termos de duração quando o casal nos é apresentado?

RP: Este filme debruça-se mais sobre momentos da vida pessoal do pintor do que sobre a sua obra propriamente dita. Não é um filme sobre a pintura. É um filme sobre a vida. Por isso não pretendi que a fotografia do filme sugerisse a arte do artista. Quando muito, nalguns momentos, existe uma presença que ultrapassa o domínio diegético, como o caso da cena de Amadeo e Sonia Delaunay, artistas modernistas, em conflito ideológico com a pintura clássica e portanto num ambiente dissonante para o seu gosto, numa cena de atrito entre os dois personagens.

JG: Foi referida uma intenção de homenagem ao pintor. De que forma é que se procedeu isso?

RP: Na minha opinião, a principal homenagem a Amadeo no filme não se baseia na referencia à sua obra pictórica. Bem vistas as coisas ela fala por si, não precisa de nenhum filme que sublinhe a sua importância e potência. Amadeo foi um artista que estava em linha com a vanguarda mundial da sua época. O advento da Primeira Guerra Mundial afastou-o do epicentro da revolução artística em curso na Europa e mais tarde a sua morte prematura interrompeu um fluxo de criação artística sem paralelo entre os artistas portugueses. A existência do filme presta homenagem à sua tenacidade, capacidade criativa e ao seu espírito artisticamente revolucionário sobretudo num contexto tão adverso como era o de Portugal nessa época.

Amadeo 1.1.10

JG: O filme é colorido, a palete de cores é viva. No momento do flashback (1911) em Paris, quando se esperaria convencionalmente ser um ambiente mais frio, apercebemo-nos de que, adotou uma alteração do ponto de vista cromático para ainda mais quente que o momento anterior. Por que razão optou para o filme uma luz carregada e mais quente?

RP: O filme está dividido em três partes distintas, a que correspondem diferentes territórios e momentos da vida de Amadeo (Manhufe e Porto; Paris; e Espinho). Desde o inicio pretendemos reflectir na fotografia do filme os diferentes estados de espirito do personagem bem como os diferentes contextos em que ele se movia, em cada uma dessas partes. Assim, a primeira parte pretende ser colorida, variada, sugestionadamente rural e simultaneamente burguesa. A segunda, Paris, claramente alegre, feérica, mundana e energética. A montagem acabou por deixar muitos desses planos de fora, mas nessa sequência no momento da rodagem utilizamos movimentos de câmara bastante reforçados, imprimindo uma grande energia à imagem e aos acontecimentos (grande trabalho do operador de Steadycam Leandro Silva, infelizmente cortado na montagem). Finalmente, na terceira parte interessei-me em sugerir a presença da proximidade da morte, da pandemia, do medo, do “longo inverno” de que Amadeo fala. Nesta parte, como de resto em todo o filme, foi muito importante o trabalho desenvolvido em conjunto com o diretor de arte Artur Pinheiro, para obter o resultado pretendido. Como curiosidade, todos os interiores do filme foram rodados na mesma casa (em Sintra) graças ao tremendo trabalho de adaptação feito pela genial equipa de arte do filme.

JG: Curiosamente numa entrevista frisou que para si, trabalhar na criação só valia a pena se fosse para criar algo de novo. No geral, como é que acha que trabalhou esse mesmo ponto neste projeto?

RP: Este filme proporcionou-me a oportunidade de criar três linguagens diferentes para uma mesma história sendo que não podia perder de vista a unidade do filme como um todo. A chave para a forma de ainda assim manter um estilo para o filme foi-me dada pelo próprio guião através da proximidade ao personagem principal traduzindo o mais possível na imagem o seu estado de espirito: as angustias, as esperanças, os medos, as alegrias, todas as emoções pelas quais os personagens estariam a passar, interpretadas de forma fotográfica, com a luz, as sombras, a composição, as cores, o movimento ou a ausência dele, etc A mim interessa-me a trabalhar fotografia de um filme como uma forma de ajudar a veicular ideias e sentimentos, provocar emoções e, antes de tudo, contar uma história, tal como o faz a música numa canção, um fundo onde encaixam as palavras da letra que é cantada. Tal como a música, a fotografia pode ilustrar o que se diz, como o pode contradizer ou acrescentar outro layer de informação.

JG: Quanto ao último plano, dada a posição dos atores, será possível que tenha tido algum tipo de inspiração à célebre fotografia da Era Vitoriana post-mortem “Fading Away” (1858) de Henry Peach Robinson?

RP: Que linda, essa referência. É muito curioso que observe essa semelhança de elementos. Não conhecia essa fotografia. Mas reconheço que quando sugeri o plano ao Vicente a presença da janela era claramente importante para mim, pelo que ela (peço desculpa pela presunção) semioticamente representa: a Luz, em contraste com o sombrio corpo que num sopro se despede da vida e, o “Céu” para onde o plano espiritual dos seres escapa para a eternidade, o que é bastante interessante considerando que se trata de um pintor, para quem a luz é a principal matéria. Outra coisa de que gosto muito desse plano do filme é de, na sua duração, vermos que Amadeo respira, que está vivo, mas não termos a certeza se Lucie está viva. A fotografia que refere provoca um eco formidável com esta interpretação!

Amadeo 1.1.2

JG: O filme não tem praticamente movimentos de câmara. Os planos fixos foi uma opção?

RP: Parte importante da narrativa do filme é a historia de um homem preso a um lugar onde não quer estar, a uma realidade atávica e atrasada. Só Paris representa o inverso: a dinâmica, o sonho, o empolgamento, a vida que pulsa, as cores que são mais do que a realidade. É a liberdade, por contraste à prisão que de certa forma significou a vivência de Amadeo em Portugal durante alguns anos. O próprio personagem fala desse encarceramento e da sua vontade de movimento. Digamos que os planos fixos ajudam de certa forma a entendermos e sentirmos o que Amadeo sente.

JG: Usou fortes contraluzes, luz marcada, não diria direta e dura mas grande definição mesmo nos planos noturnos em interiores. Optou por este tipo de luz pontual como? Terá sido por alguma razão, nomeadamente o tamanho do espaço?

RP: Claro que na preparação do filme, tratando-se de um pintor, fiz uma “visita” intensiva à sua obra. E ainda que desde sempre não me parecesse adequado fazer uma aproximação ou citação sequer ao seu trabalho pictórico (como referi, este não é um filme sobre a sua pintura) verifiquei uma coisa que é constante na sua obra e que acabei por trazer discretamente para o filme (espero eu): a vontade que ele tinha de demarcar os limites de cada forma, na sua pintura e também no desenho. Gostei de utilizar esse equivalente na fotografia a que se convencionou chamar La Ligne Claire, técnica popularizada na banda desenhada desde inícios dos anos 20 e recorrentemente utilizada por muitos pintores modernistas contemporâneos de Amadeo.

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JG: Por último, que câmara e que objetivas utilizou? Quem fez parte da sua equipa de câmara, maquinaria e iluminação?

RP: Utilizei maioritáriamente um set de objectivas clássicas: as Zeiss Super Speed. Pareceram-me a melhor escolha para obter o resultado fotografico que procurava, em conjugação com a Alexa Mini: uma boa definição na imagem sem um recorte e detalhe demasiado acentuados. Outra coisa que pretendi evitar foi o aspecto de “papel Couché” que caracteriza o resultado de algumas excelentes objectivas mais recentes, coisa que se bem que é excelente em muitos trabalhos, me pareceu inadequada para o estilo que quis criar.
Tive a sorte e o privilégio de ser acompanhado por usuais colegas de trabalho:
Lisa Persson, Nuno Ferreira, Gonçalo Pedro, Barbara Mau, Ahmed Abdelrazek e Leandro Silva na equipa de câmara.
José Manuel Rodrigues, Tó Jó, Daniel Mendonça e João Almeida na iluminação.
Carlos Santos, José Loureiro, Fábio Alas na maquinaria.
Marco Amaral no Color Grading.

Entrevista por Joana Garcia.


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