PARA QUE A MEMÓRIA EXISTA, GREAT YARMOUTH: PROVISIONAL FIGURES
Uma carta aberta para todos, 4 anos depois.
1. DOIS INÍCIOS
15 dias depois das filmagens se terem iniciado, fomos obrigados a parar devido ao covid. Meses mais tarde, deu-se início a um segundo período de pré-produção e respectiva rodagem. Esta segunda fase, teve uma preparação muito mais longa em comparação àquelas que, por norma, nos são concedidas nas longas metragens. Neste momento já não partíamos do “zero”. O guião tinha sido re-trabalhado ao longo da quarentena, e passámos a ter o luxo de cerca de cinco semanas de preparação. Para mim este período foi inesquecível. Conhecia o Marco Martins há muitos anos, mas nunca tínhamos trabalhado juntos.
O local de base do filme era um hotel vazio (igualmente décor), onde eu e o Marco trabalhávamos, cada um num quarto, transformado em escritório.
O Marco escolheu o quarto onde Dickens tinha estado hospedado em 1848 e escrito David Copperfield. Era virado para a promenade, junto a uma extensão de mar enorme.
Eu, três quartos ao lado, tinha criado igualmente o meu espaço de trabalho: mesa junto à janela, outra mesa que retirei de outro quarto encostada a esta, com as plantas dos decores onde podia desenhar, pensar, sistematizar ideias. Colados nas janelas, os filtros de cor (gelatina) faziam-me habitar a cor e tomar opções.
Neste filme acho que desenhei mais que o habitual - no tablet, em papel, nas plantas dos décores.... Fui construindo também, numa parede do quarto, um moral de imagens que crescia dia a dia. Eram stills de filmes, pinturas, desenhos meus, imagens de instalações... Tudo articulado quase correspondendo à estrutura cronológica do filme.
Para mim, será este o local que marca o sonhar com os planos da rodagem que se aproximava. Foram estas cinco semanas que fizeram crescer a nossa cumplicidade, e me permitiram entrar cada vez mais na cabeça do Marco, com tudo aquilo que ele partilhava e eu lhe levava também.
2. O DIA A DIA DA RODAGEM
2.1 o espaço de filmagem
Filmar com o Marco Martins, ou melhor, fazer luz para o Marco filmar (ele opera a câmara, embora eu também a tenha operado numa ínfima parte), implica dar-lhe uma opção de 360º livres para ele e para os seus actores. Aliás, esta foi uma das primeiras coisas que me disse. É uma condição, uma premissa, sempre que filma. Eu disse que sim, mas referi igualmente que esta liberdade nunca lhe seria dada através da utilização de top light.
Para mim, esse sistema tão recorrente hoje em dia, cria uma grande monotonia na fotografia dos filmes, pois coloca problemas graves para a captação de som, problemas na modulação de luz na cara dos actores, etc. Claro que essa intenção poderá existir obviamente, mas não de forma sistemática como referi. Por vezes, nos corredores de hotéis filmados recorri a essa luz. Noutras circunstâncias, quando havia janelas nos corredores, lá conseguia que a luz entrasse lateralmente e o top light deixava de ser a luz que dominava esses espaços. Portanto, o que propus ao Marco, foi dar-lhe essa liberdade por ele pretendia, mas com luz cons‐ truída essencialmente em tripés, no chão, para que esta encontrasse os olhos, as caras, as silhuetas, o contraste, conforme ele colocasse a câmara relativamente ao ângulo de luz e aos corpos que filmava.
2.2 a construção dos planos, e a escrita de uma câmara que procura uma verdade
Quando se filma com o Marco Martins, temos que incorporar, rapidamente, que a ideia do plano como unidade de construção do filme é "praticamente inexistente". Tive o privilégio de assistir e participar "numa luta" entre a gravação da Alexa-Mini e a unidade dramática de cada cena.
O frente a frente entre, o realizador (com a câmara) e os actores, produz coisas que não acharia possíveis até as viver neste filme. Ele usa uma espécie de método de um "cinema tempo", a duração de gravação em parceria com um "cinema movi‐ mento", onde ele escreve através da imagem uma coreografia específica. Quando pensamos que acabou aquele momento de filmagem, ele pode recomeçar sem corte, tornando as cenas em vertiginosos ciclos ou espirais dramáticas. A represen‐ tação dá lugar a uma verdade, aquela que o Marco quer fabricar.
No fim de muitos planos/cenas, atinge-se uma espécie de estranha felicidade, que, apesar da exaustão, se lê no rosto de cada um de nós, a equipa.
A força motriz do Marco faz com que cada um de nós dê sempre o seu máximo, no menor tempo possível, com a maior qualidade que em cada momento emerge e se manifesta (ou não) em cada um de nós.
Nunca tinha feito um filme sentado num monitor. Mas a verdade é que este novo método funcionou muito bem, e de forma bastante natural.
A câmara reage através do seu operador, de uma forma mais rápida e intuitiva que o seu próprio pensamento. Nós podemos saber o que aí vem, antes de o vermos, sabemos o que o actor muitas vezes vai fazer, antes de essa ação acontecer... Na forma de Ver é que está a grande diferença. O Marco ao fazer câmara Vê, e há quem Observe a fazer a mesma coisa.
Cada um de nós vê de uma maneira diferente, e por muito cúmplice que se seja do Marco, por muito que intuamos o seu pensamento, por muito que habitemos a sua cabeça, só ele tornará único e especifico essa atitude/gesto com a câmara. Situação esta que, não podendo deixar de referir, se trata de uma total excepção à maioria esmagadora de realizadores.
O gesto dele será sempre o certo, eu estava lá para observar no monitor, e respon‐ der quando era convocado para isso, quando a certeza não lhe era absoluta. Tornei-me assim espectador cúmplice de um filme que estava a fazer.
2.3 os espaços transformados
A fotografia de um filme depende 80% do trabalho do departamento de arte, e da qualidade dos espaços onde se filma. Em Great Yarmouth este facto tornou-se novamente numa evidência.
Os espaços escolhidos tinham essa qualidade inerente através de revestimentos como papel de parede, alcatifas, cores, etc.
Em corredores, quartos, e outros espaços que não tinham um valor cinematográfi‐ co como aqueles anteriormente referidos, a extraordinária intervenção criativa do Wayne dos Santos fez elevar o seu / nosso trabalho a um nível, em que muitas vezes, não se percebia onde acabava a realidade dos espaços, e onde começavam as ações criativas do Wayne.
Não posso deixar de falar de outro elemento que fez a fotografia deste filme de mãos dadas comigo, com o realizador, e com o projecto — as patines executadas pelo incansável e genial Ricardo Reynaud. Patines nos vidros, carros, vitrines, que deram uma qualidade pictural muito grande. As sujidades, as manchas, etc, fizeram subir a imagem e espaços filmados a um nível bastante substancial. Como foi extraordinário ver o Reynaud trabalhar!
2.4 a cor
O uso da cor existe por dois motivos. Numa primeira fase, construí um sistema cromático de identificação dos vários hotéis. No entanto, na montagem, os diferentes espaços fundiram-se de uma forma em que, quase se pode afirmar que existe “apenas um hotel”. E com isto essa identificação passou a estar diluída.
O outro motivo, é que sempre achei que a cor pode construir a ilusão de uma espécie de odor, para que desta forma se torne reveladora dos espaços, da sua sujidade, da humidade existente, do quanto infinito pode ser um corredor por ir escurecendo, conforme o cromatismo que aplicamos. A cor pode ser usada como um contra-campo do espaço apelando aos nossos sentidos.
No décor da fábrica, sempre achámos que deveria haver um ambiente mais clínico, e pelo facto de ser já por si impactante, não o deveríamos sublinhar. A cor aqui, passaria a ser meramente decorativa, distractiva, e até eticamente incorrecta. Neste espaço que se abre à luz difusa e não classificativa, chega uma estranha “paz” no fim do filme, até tudo recomeçar, tal como nos movimentos de câmara vertiginosos e elípticos que anteriormente descrevi. Mas aqui a câmara já está em tripé e observa, impotente, os mecanismos fabris que andam e param por sua própria vontade.
Na promenade de Great Yarmouth existem casinos com muita luz de néon. Nos exteriores noite, nunca quis sobre-expor estas luzes, com a sua explosão cromática inerente. A exposição era sempre feita para estas fontes, indo depois trabalhar o nível da cara dos actores da forma desejada para a cena, ou estariam mais escuros, ou com o mesmo nível de exposição dos néons que víamos em plano. Por vezes, as caras eram iluminadas de forma a simular que seria a luz existente a fazê- lo. Noutras ocasiões, o actor seria iluminado contrariando o realismo construído no exemplo anterior.
2.5 e o fim
O outro grande cúmplice deste filme foi e sempre será a Beatriz Batarda. A sua entrega sem reservas fez com que nós, equipa técnica, também a seguíssemos nessa atitude. A Beatriz...! Para mim será para sempre o filme, e o filme será para sempre ela.
Era o fim e sentimos que saímos todos mais unidos, pois o método e todo o processo de rodagem foi muito diferente do habitual. Toda a equipa teve uma imersão enorme.
A rodagem tinha acabado... Todos nós nos sentimos empurrados de um comboio em movimento. "As rodagens são sempre assim", dizíamos, mas esta foi definitiva‐ mente diferente.
Que sentido faria voltar agora para o local de onde tínhamos partido? Depois de se viver tão intensamente este período, deslocados para um território desconhecido até então, o que poderá vir depois de tudo isto?... Pensava eu muitas vezes.
Se o covid voltasse e nos levasse novamente dali para fora, o Marco não iria embora, como nos escreveu naquele lindo mail antes da 2a fase de rodagem. Eu disse-lhe que também ficaria ao seu lado, nada me arrancaria daquele sonho... “Nem que se filme com o telemóvel!!!” afirmava ele.
2.6 e um novo início
A nossa vida mudou depois deste filme. A forma de ver o mundo, a forma de olhar para as pessoas que filmamos, a forma de olharmos para nós próprios e para cada um de nós.
A mim também me mudou, e muito. Desde então passei a viver com a Rosa, que tanto amo. O cinema também é, e sempre será, um acto de amor. Neste filme descobri que é verdade... Finalmente vi que o cinema muda as pessoas e a vida delas de forma irreparável.
Obrigado por tudo isto Marco.
João Ribeiro, aip Maio, 2024
EQUIPA
Câmera: Ricardo Simões, José Pedroso e Daniel Ferreira Maquinaria: Manuel Ramos e Rosa Vale Cardoso Iluminação: Rodrigo Dray, Pedro Branco e Donato Melo
EQUIPAMENTO
Câmara: Alexa-Mini
Lentes: Bausch & Lomb Super Baltar f2.3 ISO: 3200
Iluminação:
HMI (575w, 1.2kw, 4kw, etc)
Alguns LED’s (ao contrário do habitual, trabalhei com luz LED, pois era necessário simular os neons da marginal no interior de alguns decores)
Dedolights e incandescia habitual (2000W, 650W, etc)
Maquinaria: Slider
Light Weight Dolly
(e um carro de golf para executar alguns travellings)
Associação de Imagem cinema-televisão Portuguesa
Fundada em 2 de junho de 1998
Pela Arte e Técnica Cinematográfica
Telef.: +351 911 993 456