"A Travessia"
Quando o Fernando Vendrell me apresentou o projeto A Travessia, entregou-me um texto escrito por si, um apanhado de toda a aventura dos aviadores, e que serviu de base para a escrita do guião. Descrevia as aventuras (e desventuras) de Sacadura Cabral e Gago Coutinho e de como conseguiram chegar ao Brasil em 1922, passando pelas agruras de obter os fundos necessários, os preparativos da viagem, lutar contra o ceticismo da época, e ainda despenhando dois aviões. Tratava-se de uma série de época, passada em Lisboa, Cabo Verde e Brasil, com aviões e navios de guerra da Primeira Guerra, no meio do oceano Atlântico e tudo isto com o orçamento das séries portuguesas. Devo confessar que estremeci, mas o entusiasmo do Fernando era contagiante e se aviadores conseguiram este feito com as condições que tinham, nós também íamos conseguir fazer esta série! Foi com este espírito que partimos para esta aventura.
As referências da série eram filmes dos anos 20 e 30 que abordavam o espírito da aviação: Wings (1927), Hells Angels (1930), Air Mail (1932), Only Angels Have Wings (1939) entre outros. A série devia estar envolta deste pioneirismo, um misto de espírito científico visionário e paixão tecnológica futurista, com a loucura dos anos 20. Por outro lado, o Fernando gostaria de se aproximar do visual da banda desenhada, principalmente Corto Maltese, cujo desprendimento do protagonista é muito próximo da personalidade de Sacadura Cabral.
Optei por trabalhar com bastante contraste, quer pela iluminação, quer pelo cromatismo, conforme as situações. Os primeiros episódios revelam a impossibilidade das personagens conseguirem os seus objetivos, ou seja, voar. Utilizei por isso a luz das janelas, quer de dia, quer de noite, para criar uma ideia de clausura, reforçando o desejo de libertação das personagens. As cores não poderiam fugir do gosto da época e foram muito bem escolhidas pelo departamento de arte, evitando os tons mais elétricos, indo para os tons secos, sem deixar cair a série num estilo antigo. Acrescentei um tom cyan às noites que serviu para contrastar com os tons tendencialmente quentes dos interiores. Esta conjugação foi aliás muito bem trabalhada pelo colorista Paulo Inês que conseguiu chegar ao ponto certo e ajudou a manter a coerência ao longo da série.
Em termos de equipamento usei a conjunção da Alexa Mini com as Leitz Summilux-C que conseguem um equilíbrio entre o moderno e o antigo. Gostaria de ter usado o formato 2:1 porque traria uma outra dimensão à série, com melhor aproveitamento do espaço, da mise-en-scène e da escala dos aviões, criando mais profundidade com elementos em primeiro plano. Infelizmente, a RTP impõe o formato 16:9 para as suas transmissões, ficando o formato 2:1 para uma versão posterior em longa-metragem
Outro aspeto interessante da série foi a inclusão das imagens arquivo que existiam da época. Existe um filme da época, realizado por Henrique Alegria, O Raid Aéreo Lisboa-Rio de Janeiro, fotografado por um colega nosso de outros tempos, Artur Costa de Macedo, que relata parte final da viagem. As imagens são tão boas que foram integradas na série criando-se para tal uma personagem de um operador de câmara. Parte dessas imagens acabaram por colar diretamente com cenas feitas por nós, criando-se um diálogo muito interessante com uma diferença de cem anos.
Um dos grandes desafios que a série apresentava eram as cenas com os aviões da época porque teriam de ser criados de raiz ou feitos digitalmente. Existiam, no entanto, duas réplicas do hidroavião Fairey IIID “Santa Cruz”, que terminou a travessia do Atlântico Sul, feitas por “apaixonados” da aviação, uma versão à escala real, feita pelo piloto de aviação Valter Santos; e outra réplica, com escala 1:4, feita pelo aeromodelista Mário Vilaça e seu filho (uma delícia do aeromodelismo!). Utilizámos esta última para fazer planos do avião a voar, com recurso a drone operado pelo Frederico Borges e uma câmara a partir do solo. Parte deste material originou planos na montagem, outra serviu de plates para VFX.
A réplica à escala real seria usada para cenas com os atores nas mais diversas situações, desde a preparação da viagem, no hangar, até ao sobrevoar do Atlântico, passando pelos dois acidentes que sofreram em pleno oceano. Dadas as dimensões, esta réplica não poderia ser transportada para diferentes locais. Daí que optámos por criar todas situações no mesmo local, que teria de ser o próprio hangar disponibilizado pela Força Aérea Portuguesa. O elevado número de planos que necessitávamos levou-nos a recorrer a fundos com painéis LED, disponibilizados pela FX Road Lights. Para tal, tínhamos cerca de 100 m2 de painel LED (qualquer coisa como 12x8 metros) que seriam o fundo e um painel LED móvel que utilizámos para reflexos. O cálculo do tamanho do fundo foi feito para escalas próximas com os atores. Planos mais abertos teriam de ser feitos digitalmente. Utilizei muito da iluminação que os próprios fundos geravam. O Filipe Ferraria, chefe iluminador, e o Carlos Santos, chefe maquinista, fizeram uma ambiência com uma tela 6x6 m e Skypanels S60, e utilizamos um Luxed 9 para o efeito da luz do sol ou luar. Mas grande parte da iluminação vinha do painel móvel. No entanto, seriam precisos outros aviões distintos, pelo menos mais cinco, para os quais não existia qualquer réplica. Construir estas réplicas era proibitivo para produção, pelo que foram construídos os cockpits (onde interagiam os atores) que posteriormente seriam integrados em VFX. Os fundos foram filmados com recurso a drone, operado pelo Frederico Borges, e em terra e mar pela Lisa Persson (que também foi diretora de fotografia de segunda unidade).
Fotografia de Ana Silva
Fotografias de Filipe Ferraria
A partir de storyboards, fomos definindo o tipo de imagens a utilizar como fundo em cada cena/plano, qual a paisagem, tipo de meteorologia, etc. Em algumas cenas, essa informação já constava no guião, como no caso do Raid Lisboa-Madeira efetuado por Sarmento Beires e Brito Pais em que não encontraram o destino por se terem perdido no nevoeiro. Felizmente, num dos dias em que o Federico foi gravar as imagens para os fundos encontrou um nevoeiro que serviu na perfeição. Nestes storyboards, estudamos os ângulos de câmara que serviram para os fundos, mas também a quantidade de planos que seriam feitos em estúdio ou em VFX, total ou parcialmente. Trabalhámos em estreita colaboração com o Jorge Anjos e a sua equipa da Light Film para definir esta estratégia e conseguir resolver os desafios da série. Creio que devem ter usado todas as técnicas de VFX que existem, desde o 3D ao matte painting até à IA. Um bom exemplo disto é a cena em que Sarmento Beires e Brito Pais testam o seu novo avião Pátria onde utilizaram imagens dos atores em croma, num dos nossos cockpits, e integraram com voos em pirueta do avião. Parte da cena estava em storyboard, mas o Jorge trouxe o plano final da cena quando o avião rodopia para cair em direção ao rio, o que demonstra o espírito de colaboração que houve durante toda a produção. Houve planos feitos pelo Frederico ou pela Lisa que pensávamos usar em estúdio que acabaram como plates nos VFX e fundos que vieram dos VFX para o estúdio. Na montagem, o João Brás arranjou soluções que evitaram o recurso aos VFX e o Jorge trouxe planos totalmente em VFX que foram incluídos na montagem. Foi um processo sempre dinâmico, sempre a encontrar soluções que enriqueceram a série.
Resta-me agradecer ao Fernando Vendrell por me levar para esta odisseia; à minha equipa, ao Filipe, ao Carlos, ao Danilo, à Lisa, ao Frederico e a todos os outros, pelo talento, pelo apoio e pela camaradagem; ao Jorge, ao Paulo Inês e toda equipa da Light Film por abraçarem o projeto com toda a dedicação; e à produção e restantes departamentos pelo esforço de fazerem o impossível com o pouco que têm.
Pedro Cardeira aip
01/Fev/2025
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